A palavra exegese é oriunda do grego exegeomai, exegeses. O ex tem o sentido de retirar, derivar, ex-trair, ex-ternar, ex-teriorizar, ex-por; e, hegeisthai o de conduzir, guiar.
Movido por este propósito o exegeta espírita-cristão, quando se detiver sobre o estudo de uma obra que originalmente fora escrita em outro idioma e data recuada no tempo, deve dedicar especial atenção ao exame da tradução da língua-mãe para o vernáculo.
A informação se se trata a tradução de uma tradução literal ou de uma tradução como operação linguística e literária ou ainda como substituição e produção de significados, é importante para situá-lo dentro da obra e lhe permitir uma melhor compreensão do espírito do texto, ou melhor, da ideia que, efetivamente, deseja transmitir o autor.
Não diremos que um ou outro estilo é o melhor ou mais adequado, pois, a bem da verdade, todos o são! Nosso objetivo, com estas breves linhas, é convidá-lo, você leitor amigo e você estudioso que ora nos lê, para, sempre que possível, caso exista, compulsar outra(s) tradução(ões) da obra que pretende examinar. Esta verificação pode contribuir de forma decisiva para uma mais alargada compreensão do tema em estudo.
Ilustrando a tese acima exposta, vejamos, a título de exemplo, a questão número 5, de O Livro dos Espíritos, isto porque algumas traduções, como a de Guillon Ribeiro, utiliza o vocábulo (adjetivo) instintivo, e outras, como as de Salvador Gentile e Herculano Pires, utilizam, no lugar do anterior, o vocábulo intuitivo. Citaremos estas três por considerá-las mais difundidas e utilizadas, sem, em nada, desmerecer todas as demais.
Deter-nos-emos apenas na pergunta, ressalvando que também as traduções da resposta merecem a mesma análise em razão do mesmo princípio.
Primeiro, a tradução de Guillon Ribeiro:
5. Que dedução se pode tirar do sentimento instintivo, que todos os homens trazem em si, da existência de Deus?
— A de que Deus existe; pois, donde lhes viria esse sentimento, se não tivesse uma base? É ainda uma consequência do princípio – não há efeito sem causa.
Por segundo, a tradução de Salvador Gentile:
5. Que consequência se pode tirar do sentimento intuitivo que todos os homens carregam em si mesmos da existência de Deus?
— Que Deus existe; porque de onde lhe viria esse sentimento se ele não repousasse sobre nada? É ainda uma consequência do princípio de que não há efeito sem causa.
E, por terceiro, a tradução de Herculano Pires:
5. Que consequência podemos tirar do sentimento intuitivo, que todos os homens trazem consigo, da existência de Deus?
— Que Deus existe; pois de onde lhes virá esse sentimento, se ele não se apoiasse em nada? E uma consequência do princípio de que não há efeito sem causa.
Tal cuidado não é simples capricho e tampouco excesso de zelo. É, sim, o produto de um firme e responsável desejo de bem compreender a verdadeira essência do ensinamento transmitido. Ademais, no caso em exame – o estudo sistematizado de O Livro dos Espíritos –, para bem compreender a resposta, indispensável, por óbvio, primeiro, compreender a pergunta: afinal, o que Allan Kardec desejava, de fato, saber? Relembremos a questão número 5: “Que consequência se pode tirar do sentimento ‘instintivo/intuitivo’ que todos os homens ‘carregam em si/trazem em si/carregam consigo’ mesmos da existência de Deus?”.
O Original francês
Busquemos no original francês a redação da aludida questão:
5. Quelle conséquence peut-on tirer du sentiment intuitif que tous lês hommes portent en eux-mêmes de l’existence de Dieu?
— Que Dieu existe; car d’où lui viendrait ce sentiment s’il ne reposait sur rien? C’est encore une suite du principe qu’il n’y a pas d’effet sans cause.
Segundo o dicionário Michaelis da língua francesa, intuitif se traduz por intuitivo. Eis a tradução ipsis litteris:
5. Que consequências podem ser extraídas do sentimento intuitivo que todos os homens se vestirem da existência de Deus?
— Deus existe, porque de onde ele se sentiria se ele não se baseou em alguma coisa? Esta é outra consequência do princípio de que não há efeito sem causa.
A tradução literal dá conta, portanto, de que o vocábulo utilizado por Kardec é intuitivo; já a tradução como substituição e produção de significados, o traduz por instintivo.
A partir deste ponto, a exegese da questão em exame nos remete, dentre outros, ao estudo do significado (semântica) de intuitivo (ou intuição) e instintivo (ou instinto): são palavras sinonímias ou homonímias? Foram utilizadas segundo a conotação ou denotação?
O Significado das palavras intuição e instinto
Vejamos também, para ampliar a nossa análise, o significado dos vocábulos intuição e instinto.
Segundo o dicionário Aurélio, a palavra intuição tem o seguinte significado: s.f. Conhecimento claro, direto, imediato da verdade sem o auxílio do raciocínio. / Pressentimento; faculdade de prever, de adivinhar: ter a intuição do futuro. / Visão clara que os santos têm de Deus; intuitivo: adj. Que se tem por intuição: conhecimento intuitivo. / Dotado de intuição: natureza intuitiva. / Que age por intuição.
Ainda segundo o Aurélio, a palavra instinto tem o seguinte significado: s.m. Impulso natural: instinto de conservação. / Primeiro movimento que dirige o homem e os animais em seu procedimento. / Tendência; aptidão inata. / loc. adv. Por instinto, por uma espécie de intuição; sem reflexão: ele agiu por instinto; instintivo: adj. Que nasce do instinto: movimento instintivo.
Por sua vez, para o Dicionário Espírita, a palavra intuição tem o seguinte significado: Intuição – [do latim intueri + -ção] – 1. Ato de ver, perceber, discernir de forma clara ou imediata. 2. Ato ou capacidade de pressentir. 3. Percepção na sua plenitude de uma verdade que normalmente não se chega por meio da razão ou do conhecimento discursivo ou analítico. Ver: Instinto.
E, ainda segundo o Dicionário Espírita, a palavra instinto tem o seguinte significado: Instinto – [do latim instinctu] – 1. Tendência natural; aptidão inata. 2. Força de origem biológica, própria do homem e dos animais superiores, que atua de modo inconsciente, espontâneo, automático, independente de aprendizado. 3. Intuição; inspiração. 4. Espécie de inteligência rudimentar que dirige os seres vivos em suas ações, à revelia de sua vontade e no interesse de sua conservação. O instinto torna-se inteligência quando surge a deliberação. Pelo instinto, age-se sem raciocinar; pela inteligência, raciocina-se antes de agir. No homem, confundem-se frequentemente as ideias instintivas com as ideias intuitivas. Estas últimas são as que ele hauriu, quer no estado de desdobramento, quer nas existências anteriores e das quais ele conserva uma vaga lembrança.
Se as ideias intuitivas são aquelas que o espírito hauriu em existências anteriores e das quais conserva a lembrança e se o instinto é uma força de ordem biológica em que se age sem raciocinar, qual vocábulo desejou Kardec empregar?
Entretanto, não interessa apenas saber qual o vocábulo quis empregar o Codificador: se intuitivo ou instintivo. Notemos que as traduções mencionadas acima fazem também distinção nos termos trazem em si, carregam em si e trazem consigo e a tradução ipsis litteris, se vestirem.
Sobre estes últimos não nos deteremos por considerar que conseguimos transmitir a ideia do exame minucioso do texto quando destacamos os adjetivos intuitivo e instintivo. Trata-se do mesmo princípio e do mesmo método. Diremos apenas que trazer em si, carregar em si e trazer consigo ou ainda, se vestir pode ensejar múltiplas interpretações. Ao exegeta, atento e cuidadoso, nenhum detalhe deve passar despercebido e não merecer a devida e necessária análise: toda palavra, expressão, o sujeito da ação, os tempos verbal e cronológico, o lugar (espaço geograficamente considerado), etc., devem ser objetos de atenção e cuidadoso exame.
O nosso objetivo com este breve comentário não é o de concluir por uma ou por outra palavra, ou uma ou outra expressão, embora já tenhamos formado a nossa opinião particular. O nosso objetivo, com toda vênia, é o de aguçar, no leitor amigo, o desejo de aprofundar, no maior nível de detalhe possível, o exame da matéria a que se proponha estudar, em especial, da Doutrina Espírita e do Evangelho de Jesus.
Ao exegeta espírita-cristão está reservado, portanto, o papel de buscar extrair o “espírito da letra”, de sair da superficialidade, de mergulhar nas entrelinhas, de ir cada vez mais fundo e de contribuir, assim, para a verdadeira compreensão e para a plena vivência dos ensinamentos transmitidos por Jesus e seus prepostos diretos, os Espíritos Superiores. Em suma: fazer luz sobre a luz!
A Questão da tradução na exegese espírita, por José Márcio de Almeida. Publicado no site do Instituto Espírita de Estudos Filosóficos – IEEF: http://www.ieef.org.br/wp-content/uploads/2015/04/A-quest%C3%A3o-da-tradu%C3%A7%C3%A3o-na-exegese-esp%C3%ADrita.pdf
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